Imaginem este cenário: vocês são o Bispo de Elvas (no século XVIII, em que esta cidade alta-alentejana ainda era sede de uma diocese), e no cerimonial da missa falta o híssope (o instrumento que ou se mergulha na água benta e depois se vira sobre os fieis ou que se usa para aspergi-los directamente), distração que o vosso deão não notou, e depois, tomados de uma grande raiva (afinal, por interpretação excessiva da teologia e da sacralidade de tudo o que envolva a igreja, o híssope será assim "sagrado") vocês atiçam o povo contra o deão, que porém tomado de orgulho se recusa a ceder do seu cargo e da sua posição, e portanto levam o caso às mais altas autoridades, que julgam que o deão deve de facto deixar o cargo que ocupa. O deão por sua vez recusa abandonar a igreja de Elvas e com o auxílio de alguns aliados (armados) ocupam-na, obrigando as autoridades eclesiásticas e vocês, o Bispo local, a fazerem uma espécie de guerrinha pela igreja da vossa diocese e o híssope. Assim começa (especificamente, do canto I ao V), de modo tão simples como ridículo (principalmente pelo tom épico dado pelo autor ao texto), O Híssope do poeta do movimento literário da Arcádia Lusitana (que também inclui o célebre Bocage) Lisboeta de nascimento mas criado no Rio de Janeiro (depois da migração da família ainda em criança) António Dinis da Cruz e Silva.
Esta 36.ª publicação deste blogue é um poema herói-cómico (uma espécie de romance picaresco em verso que aplica o tom de um poema épico, e não raro imitando um poema épico específico) em 8 cantos e cerca de 200 páginas originalmente publicado em 1768, por um autor Luso-Brasileiro que foi poeta, dramaturgo neoclássico e mesmo autor de romance pastoril, numa obra que em qualidade e variedade lhe mereceu nota como um dos principais autores portugueses do século XVIII (e mesmo do XIX até à ascensão de Garrett, Herculano e Feliciano de Castilho). Ao longo destes cantos o autor funde a acção propriamente dita com comentários espirituosos sobre a sociedade humana, a poesia, a natureza humana e o Portugal do seu tempo, enquanto vai avançando a narrativa da guerra ridícula dentro da comunidade eclesiástica de Elvas (por esta altura, sabemos prever que, dado que a narrativa é picaresca, envolve desafios e uma fase mais disparatada da vida de dado grupo de personagens, e que pelo fim do livro esta situação terá de estar resolvida, podemos ver que estamos diante uma espécie de "romance de formação", sub-género "romance de desilusão", como outros que já vimos aqui, desta vez em verso).
A origem desta guerra, veio de uma espécie de concílio sobrenatural no estilo do dos deuses n'Os Lusíadas, desta vez com vários tipos de génios, com alegorias da Soberba, da Moda e outras qualidades e defeitos e divindades greco-romanas menores mais alegóricas, e neste concílio todas as entidades presentes discutem sobre a moda e sobre o que é certo para a prática do cerimonial eclesiástico (de um ponto de vista até mais de moda e convenção que espiritual) e tomam posição por um lado ou outro da questão sobre o híssope, e por isso decidem incentivar a guerra entre Deão e Bispo. Assim os espíritos contra o híssope decidem surgir ao Deão, a Lisonja tomando a forma de um lacaio deste Deão e incentivam-lhe a soberba (note-se a crítica, por simbolismo, aqui aplicada a pequenos eclesiásticos, ao mostrá-los manipuláveis por lisonja e passíveis de se darem à soberba; acrescente-se que o Deão foi manipulado para deixar a sua casa de campo e ocupar a igreja por influência da Senhoria, que afirma que ele a adora, outra insinuação sobre o carácter do Deão, enquanto o Bispo é incentivado à desnecessária guerra pela Excelência, sendo mais tarde rodeado pelos incentivos da Ira, Impaciência, Soberba...) e a acção que já acima indicámos, a que o próprio se compromete em pensamento em visões ao longo da noite que se segue (e que antecede o princípio da guerra sobre o utensílio de missa). Depois da ocupação do templo já referida, há uma primeira embaixada de parte a parte, em que o Bispo se encontra com o Deão.
O encontro do Deão e do Bispo, com respectivos acompanhantes
Incentivados pelos espíritos que os manipularam para este confronto (frequentemente tomando a forma de outros humanos para esse fito), o Deão humilha o Bispo mostrando ante os seus olhos o seu híssope, o Bispo reagindo com soberba à injúria decide não dar parte fraca, e assim a embaixada que se esperava diplomática e a encerrar o conflito na verdade só serve para incendiar os ânimos e fazer o confronto continuar. Tão perigosa a situação fica que o Bispo acaba por novamente deixar a cidade, enquanto esta retoma (apesar da absurda situação sobre a qual recai a igreja) alguma normalidade, voltando as suas feiras, leilões populares, os seus cantares e poetas e recitadores locais e públicos e os seus banquetes colectivos. Enquanto isso, clero e milícia são enviados para o local (para já somente para vigiar e aguardar) e uma velhota (noutra das interessantes notas de realismo e de mostra de fait-divers da vida popular setecentista) mata um montão de frangos para um dos sobre-ditos banquetes.
Combate em torno da Igreja de Elvas
Quanto à personagem do Deão, embora ele não seja apresentado como um vilão per se e fora a sua gula por doces (o que dado muitos retratos ficcionais de clérigos com gulas mais carnais não é muito negativo) e o ser facilmente susceptível à lisonja, mas ele perde-se por essa fraqueza quanto aos elogios e pela fraqueza talvez maior ante o respeito e as prendas que os companheiros de guerra seus co-conspiradores lhe dão (como se vê no Canto VII). Assim incentivado num jantar depois da saída do Bispo em liteira para fora da cidade, ele acaba por enviar um dos seus apoiantes militares, o Vidigal, para incentivar o povo a levantamento, primeiro com pouca certeza, e olhando com olhos vagos em torno esperando reacção do público ouvinte que não vinha (dado o medo que ele provocava no público com esse vago olhar), acaba por continuar o discurso com mais assumida sede de glória militar (sonhando ter antes nascido na Grécia ou Roma antigas), mas a segunda metade do discurso é ignorada na mesma e os populares simplesmente vão comer no banquete comunal que se preparava. Para surpresa de todos e principalmente dos apoiantes do Deão, o galo morto para o banquete ergueu-se para censurar o Deão, profetizando-lhe que não teria a vitória ante os contrários que esperava, e dizendo isto voltou a tombar morto (um toque que enquanto Barcelense não deixo de apreciar por razões óbvias). Com trama montada e quase terminada (está acabado o VII e penúltimo canto), o Deão, em sua casa de campo, aconselha-se com a sua ama, que como usual destas personagens incentiva cautela a uma personagem estouvada.
Como usual de qualquer obra clássica do século XVIII e XIX, o enredo tem ainda mais uns quantos subenredos, episódios menores e momentos impressionantes e todo um elenco de personagens desenhadas com traços largos mas bem delineados nos lados dos dois clérigos combatentes e entre os espíritos que provocam todo o caso, coisas interessantes para o leitor do texto inteiro mas que não há necessidade aqui de detalhar, sendo mais importante descrever o fim, em que, como conclusão irónica, que chega sem pompa e sem glória depois de tanta grandeza em pequenez quasi-épica, o Deão acorda e é avisado de que o Bispo triunfara, libertando a igreja de novo, e assim a causa do Deão era derrotada, e este Deão, ouvindo a nova, embora infeliz, não altera a sua face e figura exterior, e aceita-a como facto contrariado mas aparentemente com alguma paz de espírito dado que o conflito e os seus trabalhos acabaram (podendo nós até teorizar se ele não estará agora finalmente livre do controlo dos espíritos que o controlaram e levaram a começar toda esta história, e o mesmo com o Bispo provavelmente, apesar de ser o partido vitorioso). Quanto ao resto quanto a este rico texto, deixo ao leitor a tarefa de ver todos os pormenores em suas próprias leituras (podem encontrar o Híssope em mais de um ficheiro de mais de uma edição no Internet Archive, infelizmente nem todas usando das igualmente caricaturais e magníficas ilustrações da 1.ª edição, para além de haver este interessante vídeo promocional de uma edição actual), deixando-vos deleitarem-se a vós próprios com a fina ironia de Cruz e Silva, a sua capacidade de narrar como se manipulasse marionetas ou fantoches ante um público, os comentários mordazes que faz sobre as políticas da Igreja Católica portuguesa quanto às suas questões organizativas e sobre as políticas da monarquia ainda absoluta embora aparentemente "despotista esclarecida" ou "iluminada", e principalmente na análise da sociedade, da arte desta e de todos os tipos desta sociedade, e principalmente criticar a arte que para o autor não conseguia apresentar toda essa variedade pelas falha da escrita gongorista. A esta altura, chegando quase a 10 números para além de metade das obras a trabalhar, já devemos saber bem que a arte resulta quanto menos exageros retóricos e vazios de sentido tem e mais serve para descrever realidades (sociais, ou pelo menos de natureza humana mesmo que de entre fantasia). E ainda teremos mais oportunidades de o confirmar aqui...
Imagine this scenario: you are the Bishop of Elvas (on the 18th century, in which this upper-Alentejo city still was still seat to a diocesis), and in the mass' ceremonial it is missing the hyssop (the instrument that either is dipped into the holy water and after is turned over the faithfuls or that is used to sprinkle them directly), distracting which the dean did not notice, and afterwards , taken-over by a big rage (after-all, by excessive interpretation of the theology and of the sanctity of everything that involves the church, the hyssop would thus be "sacred") you bait-up the people against the dean, who though taken-over by pride refuses to give in to his office and to his position, and hence take the case to the highest authorities, which judged it that the dean must in fact leave the position which he occupies. The dean on his hand refuses to abandon the Elvas church and with the aid of some of his allies (in arms) occupy it, obligating the eclesiastic authorities and you, the local Bishop, to do a knd of little-war for your diocesis' church and the hyssop. So it starts (specifically from the I to the V canto), in fashion as simple as ridiculous (mainly for the epic tone given by the text's author), O Híssope ("The Hyssop") by the Lisboner by birth but raised on Rio de Janeiro (after the migration of the family still a child) poet from the Lusitanian Arcadia literary movement (which also included the celebrated poet Bocage) Antonio Dinis da Cruz e Silva.
This blog's 36th post is a mock-heroic poem (a kind of verse picaresque novel that applis the tone of an epic poem, and not uncommon immitating a specific epic poem) in 8 cantos and about 200 pages originally published in 1768, by a Portuguese-Brazilian author who was poet, neoclassical playwright and even pastoral novel author, in a work that in quality and variety deserved him notice as one of the main 18th century Portuguese authors (and even of the 19th century until the ascent of Garrett, Herculano and Feliciano de Castilho). Along these cantos the author fuses the action proper with witty remarks on the human society, poetry, human nature and the Portugal of his time, while it goes advancing on the narrative of the ridiculous war inside the Elvas eclesiastic community (by now, we known to predict that, due that the narrative is picaresque, involves challenges and a more nonsensical phase of the life of a given group of characters, and that by the end of the book that situation will have to be solved, we can say that we are before a kind of "Bildungsroman", "Desillusionsroman" subgenre, like others that we already sw here, this time in verse).
The origin of this war, came from a sort of supernatural concil in the style of the one of the gods in The Lusiads, this time with several types of genies, with allegories of Haughtiness, of Fashion and other qualities and flaws and more allegorical minor Graeco-Roman deities, and in this concil all the present entities discuss on fashion and on what is right for the practice of the eclesiastic ceremonial (under a point of view more of fashion and convention than spiritual) and take stands for one side or the other of the issue on the hyssop, and for that decide to incentivise a war between the Dean and the Bishop. So the spirits against the hyssop decide to come-up to the Dean, Flattery taking the form of a lacay of this Dean and they incentivise him the haughtiness (let it be noted the criticism, by symbolism, here applied to small churchmen, in showing them manipulable by flattery and liable to give themselves to haughtiness; let it be added that the Dean was manipulated to leave his country house and occupy the church on influence from Lordship, who states that she adores him, another insinuation on the Dean's character, while the Bishop is icentivised into the unnecessary war by Excelency, being later surrounded by incentives from Rath, Impatience, Haightiness...) and the action that already above we stated, the one that he himself compromises with in thought in visions along the night that follows (and that precedes the beginning of the war over the mass utensil). After the occupation of the tempple already refered, there is a first embassy from party to party, in which the Bishop meets with the Dean.
The meeting of the Dean and the Bishops,with respective escourts
Incentivised by the spirits that manipulate them to this clash (frequently taking the form of other humans to that aim), the Dean humiliates the Bishop showing before his eyes the hyssop, the Bishop reacting with haightiness to the reproach decides to not to show-out falling to pieces, and so the embassy which expected oneself diplomatic and to enclose the conflict in truth only serves to fire-up more to the cheers and to make the confrontation continue. So dangerous does the situation get that the Bishop ends by again leaving the city, while this return (despite the absurd situation over the which befell the church) some normality, coming back its fairs, popular auctions, its public song-tunes and local poets and reciters and his collective banquets. Meanwhile, clergy and militia are sent to the locale (for now merely to watch-over and await) and a crone (in another of the interesting notes of realism and of showing of seventeen-hundredth commoner life's fait-divers da vida popular setecentista) mata um montão de frangos para um dos sobre-ditos banquetes.
Combat around the Elvas church
About the character of the Dean, although he is not represented as a villain per se and aside his gluttony for sweets (what given many fictional portrayal of clergics with more carnal gluttonies is not too negative) and the being easily susceptible to flattery, but he loses itself for that weakness to compliments and by the weakness maybe greater before the respect and the gifts that the war buddies and his co-conspirators give him (as it is seen on the Canto VII). So incentivised on a dinner after the Bishop's exit on sedan-chair ut of the city, he ends by sending one of his military supporters, Mr Vidigal sir, to incentivise the people for uprising, first with little assuredness, and looking with vague eyes around awaiting reaction from the listening audience that did not come (given the fear that he provoked on the audience with that vague gaze), ends by continuing the speech with more assumed thirst of military glory (dreaming having instead been born in ancient Greece or Rome), but the second half ot eh speechis ignored nyhow and the commoners simply go to eat on the communal banquet that getting itself prepared. For everyone's surprise and mainly of the supporters of the Dean, the rooster killed for the banquet arose itself to censor the Dean, prophesizing him that he wouldn't have victory before the counter-strikers that he expected, and saying that he tumble down dead again (a touch that as Barcelos-native I cannot help appreciating for obvious reasons). With ploy set-up (it is ended the VII and one-to-last canto), the Dean in his country house, advises himself with his nanny, who as usual of these characters incentivises caution to a maladroit character.
As usual of any classical work from the 18th or 19th century, the plot has yet some more subplots, minor episodes and impressive moments and all a cast of characters drawn with wide but well outlined strokes on the sides of the two combatant clergymen and among the spirits that proke all the affair, things interesting for the reader of the whole text but that there is no need of here detailing it, being more important to describe the end, in which, as ironical conclusion, that arrives without pomp and without glory after so much quasi-epical greatness in smallness, the Dean wakes up and is warned that the Bishop triumphd, liberating the church again, and so the Dean's cause was defeated, and this Dean, hearing the news, though unhappy, does not alter his visage and outer figure, and accepts it as fact begrudgingly but apparently with some peace of mind given that the conflict and his labours ended (being us able even to theorise if he is not finally free from the control of the spirits that controled him and led to start all this story, and the same with the Bishop probably, despite being the victorious party). About the rest about this rich text, I leave to the reader the task of seeing all the details in their own readings (you can find The Hyssop in Portuguese in more than one file from more than one edition at the Internet Archive, unfortunately not all using he equally caricatural and magnificent 1st edition illustrations, besides there being this interesting promotional video to a current edition), leaving you delighting yourselfs with the fine irony of Cruz e Silva's, his capacity of narrating as if he manipulated string or hand puppets before an audience, the bitting comments that he does on the Portuguese Catholic Church's politics about its organisational issues and on the politics of the monarchy still absolutist although apparently "enlightened absolutist" or "despotist", and mainly in the analysis of the society, the art of the former and of all the types of society, and mainly criticising the art that for the author could not present all that variety by the flaws of the gongorist writing. At this time-point, arriving almost to 10 numbers beyond the half of works to work on, we should know well that art works as many less rhetorical exaggerations and emptinesses of meaning has and more it serves to describe realities (social, or at least of human nature even if from among fantasy). And we still will have more opportunities to confirm it here...
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