quarta-feira, 17 de junho de 2015

"Livro de Linhagens do Conde D. Pedro", Conde D. Pedro de Barcelos // "Book of Lineages of the Count Don Pedro", Count Don Pedro of Barcelos

Dentre os livros medievais portugueses conhecidos, O Livro de Linhagens do Conde D. Pedro conhecido como o quarto (e último) livro de linhagens português por data de escrita (acima a capa iluminada de uma edição do século XVII) era no Portugal medieval era provavelmente o livro mais consultado depois da Bíblia (e com o mesmo zelo). Redescoberto e publicado por Alexandre Herculano nos meados do século XIX (e que dele tirou o material para alguns dos seus melhores contos e novelas, como A Dama Pé-de-Cabra ou A Morte do Lidador), o conjunto de histórias de família radicadas em Portugal (de origem portuguesa ou estrangeira) baseou-se nas tradições das próprias famílias (e por vezes nas das rivais), portuguesas, galegas, castelhanas, biscainhas e algumas casas reais europeias. A partir publicação oitocentistas é que começou a ser chamado também de livro nobiliárquico (termo para o tipo de livro dado só a partir do século XIX).
Todas as diversas fontes são coligidas pelo filho ilegítimo de D. Dinis e 3.º Conde de Barcelos Pedro Afonso, que se encontra hoje enterrado no Mosteiro de S. João de Tarouca. Estes contos parecem falar de milhentas famílias nobres de Portugal, mas analisando o material disponível não só não há aqui nacionalismo excessivo (o que não admira: afinal o nacionalismo como hoje entendido nem existia) como dá a verdadeira ideia da nobreza "multinacional" com famílias com raízes estrangeiras e incluindo junto com as narrativas de famílias reais de toda a cristandade (até a narrativa original do Rei Lear e as estórias do Rei Artur são incluídas aqui). Muitas são as versões e origens deste texto, sabendo hoje que algumas versões do texto têm várias adições (as principais ainda na Idade Média foram do chamado "refundidor" que terá feito adições e alterações ao texto a partir de 1388), e entre as várias traduções para Castelhano nos séculos seguintes algumas terão também feito "refundições". No quadro destas tradições familiares de tipo quase de conto popular não faltam algumas narrativas fantásticas com magos e fadas, outras de reis e servos, outras de baixa-nobreza, de clérigos, nobres adulteras e afins. Seria interessante ver edições para introduzir o texto a leitores jovens, por questão de faixa etária, os contos de carácter erótico ou escatológico removidos ou expurgados.
O Conde D. Pedro de Barcelos numa árvore geneológica iluminada da Genealogia dos Reis de Portugal iluminado e coligido pelo iluminista de origem neerlandesa António de Holanda
O texto começa com uma introdução com os "salamaleques" de abordagem ao leitor e de louvar de Deus gerais, explicando os fins do texto e a importância de saber e estudar a histórias da famílias de "sangue azul". Depois seguem-se várias narrativas da família Sousa, seguindo-se várias outras, seguindo encadeamento de unidades temáticas de família, e passando por alguma ligação famíliar ou de rivalidade para outra unidade temática de outra família, e por aí fora. Com isto nasceu um texto de não-ficção que mesmo assim foi um dos primeiros a mostrar os elementos da ficção literária na literatura medieval portuguesa, um dos primeiros trabalhos com ficção curta, antepassado de muita contística seguinte. Este é claramente um dos primeiros clássicos literários da nossa literatura, e dos primeiro com extrema beleza formal (até que ponto isso vem da prosa do próprio Conde, e não de copistas contratados pelo próprio não há certeza).
Túmulo do autor em Tarouca
Neste livro, os leitores encontram todo o tipo de estórias, que poderiam em edições modernas ser compiladas de várias formas, por temas de estórias, por nacionalidades das famílias ou estórias (como fez José Mattoso na antologia Narrativas dos Livros de Linhagens) ou por núcleos temáticos. Entre as narrativas deste livro temos as da célebre família de-Entre-Douro-e-Minho dos Sousas (principalmente as das irmãs de D. Gonçalo de Sousa, Chamoa Mendes e Ouroana Mendes), a da viagem no Iraque do cavaleiro Português Rui Babilón (adição do refundidor de 1388), a da família castelhana de Lara (com os famosos Sete Infantes que muito deram que falar no cordel luso-brasileiro e castelhano). A linguagem pode ser relativamente acessível em muitas linhas apesar da diferença dada pelos séculos às variedades de Português (embora falte uma edição para Português moderno do texto inteiro tanto quanto saiba), e há algumas descrições mais completas das paisagens, ambientes e roupas (porém não prevalentes ao longo do texto) que pintam o quadro da sociedade feudal portuguesa e dos ambientes da Europa cristã e da Mourama pré-modernas, até terras tão distantes de Portugal como a Babilónia visitada por Rui Babilón.
Falta uma edição ilustrada condigna (pelo menos pós-medieval?), mas as palavras ilustram por si só um quadro fino e belo, como complexo, da Idade Média cavalaresca representada, e também das fições e lendas de fadas, demónios, reis, heróis, heroínas, vilãos e vilãs. Além disso, imperdível é a história do Rei Ramiro. Este soberano leonês que fez razias em terras do Douro e do Tejo em Portugal e em Espanha apaixonou-se pela irmã do Rei Mouro Almançor de Gaia (na altura a fronteira entre cristandade e mourama estava no Rio Douro e o Porto desde os anos de 800 era estavelmente cristão e asturo-leonês). Envolveram-se apesar do casamento do Rei cristão com uma boa cristã e do irmão da Moura se opôr a tal relação. Ambos afastados e distanciados por contexto não deixaram de se amar à distância e de forma proibida. Mas eis que, um dia, o Rei Mouro raptaria a mulher de Ramiro, levando este a partir numa missão de resgate até Gaia no outro lado do rio. A aventura que se segue é a de libertar a esposa legítima, de novas revelações sobre esta e de uma união final do rei Leonês com a princesa Moura. Esta é aliás uma lenda familiar que se tornou parte do folclore moderno dos povos de Gaia, do Porto, de Vila Praia de Âncora e da Maia (e da família Maia que se cria gerada da união do Leonês e da Moura).
Representação de linhagens de cruzamento cristo-mouro neste livro de linhagens (fonte aqui) 
Como já comentei, existem algumas narrativas mais picantes, alarves ou complexas que deveriam ser deixadas fora de eventuais edições modernas deste texto clássico para públicos mais jovens, mas os curiosos poderão encontrá-las na Wikisource que pôs online (ver a partir desta página aqui; note-se que o texto não está todo digitalizado) o texto da publicação no Portugal Monumenta Historia (secção Scriptores ou "Escritores") por Alexandre Herculano (do qual há um estudo dos livros de linhagens que se pode ler na Wikisource aqui), nalgumas bibliotecas e extractos inseridos em várias obras sobre o estudo de literatura medieval portuguesa, esta obra específica, nobiliários em geral ou vários outros temas ou pela internet fora em partes. Existem algumas traduções desta obra para Castelhano como já disse mas creio que não para outras línguas que não esta (se não estiver enganado). Uma das obras mais acessíveis em edição ou em bibliotecas é Narrativas dos Livros de Linhagem de José Mattoso, que recolhe algumas das narrativas de todos os 4 livros de linhagem (infelizmente no Português arcaico da altura) e os analisa na introdução a cada capítulo por temas (de origem de narrativas ou da família em causa). O essencial é não deixar cair no esquecimento este texto pioneiro da ficção e dos textos de curiosidades e de miscelânea simultaneamente, que são uma das raízes sobre a qual se construiu a identidade portuguesa e lusófona, servindo uma e outra vez este tipo de lendas, gabarolices de clãs, genealogias e narrativas de brutalidades medievais e de correcções de justiça brutais para construção de muitas narrativas mais surgidas posteriormente e que podem influenciar e alimentar a mundo-visão dos leitores de formas que nem os próprios por vezes conscientemente se aperceberão. E esse enriquecimento via-literatura é um caminho que vale sempre a pena percorrer.
A colectânea de Mattoso


From among the known Portuguese medieval books, O Livro de Linhagens ("Book of Lineages") of the Count Don Pedro Afonso known as the fourth (and last) Portuguese book of lineages by date of writing (above the illuminated cover of an edition of the 17th century) was in the medieval Portugal probably the most consulted book after the Bible (and with the same zeal). Rediscovered and published by Alexandre Herculano in the mid-19th century (and who from it took out the material for some his best short-stories and novellas, like A Dama-Pé-de-Cabra/"The Goat-Foot-Lady" or A Morte do Lidador/"The Death of the Toiler"), the ensemble of histories of families established in Portugal (of Portuguese or foreign origin) based itself in the traditions of the families themselves (and sometimes in those of rival ones), Portuguese, Galician, Castilian, Basque and some european royal houses. Starting from the eighteen-hundredth publication it is that it started being called of peerage record book too (term given to the tipe of book only starting on the 19th century).
All the diverse sources are collected by the illegitimate son of King Don Denis and 3rd Count of Barcelos Pedro Afonso, who finds himself today buried in the Monastery of Sao Joao de Tarouca. These tales seem to talk of a gazillion noble families from Portugal, but analysing the material available not only there is not here excessive nationalism (what does not startle one's self: after all nationalism as nowaday understood did not even exist) as it gives a real idea of the "multinational" nobility with families with foreign roots and including together with narratives of royal familiesfrom all Christendom (even the original King Lear narrative and the King Arthur stories are included here). Many are the versions and origins of this text, knowing today that some versions of the text have many additions (the main ones still in the Middle Ages were by the so-called "recaster" that would have made additions and alterations to the text startings from 1388), and among the various translations to Castilian in the following centuries some would also had made "recastings". Into the framework of these family traditions of type almos of folk tale do not lack many fantastical narratives with mages and fairies, others of kings and serfs, others of petty-nobility, of clergymen, adulterer noble-women and alike. It would be interesting to see editions to introduce the text to young readers, by matter of age group, the tales of erotic or scatological character cut out or bowdlerised.
The Count Don Pedro Of Barcelos in an illuminated family tree of the Genealogia dos Reis de Portugal ("Geneology of the Kings of Portugal") illuminated and collected by the Netherlandic origin illuminater Antonio de Holanda/Anthony from Holland
The text begins with an introduction with the general "salaam saying rite" of approaching the reader and of praising to God, explaining the text's aims and the importance of knowing and studying the histories of the "blue blood" families. Afterwards it follow themselves several Sousa family narratives, following themselves several others, following chaining of family thematic unions, and passing by some family or rivalry connection unto another family thematic unity, and so forth. With this was born a non-fiction text that even so was one of the first to show the elements of literary fiction on mmedieval Portuguese literature, one of the first works with short fiction, ancestor of many a following short-story-writing. This is clearly one of the first literary classics of our literature and among the first with extreme formal beauty (to what point that comes from the Count himself's prose, and not from copyists hired by himself there is no certainty).
Author's tomb in Tarouca
In this book, the readers find all sort of stories, that could in modern editions be compiled in several forms, by story themes, by family nationalities or stories (as did José Mattoso in the anthology Narrativas dos Livros de Linhagens/"Narratives of the Books of Lineages") or by thematic nuclei. Among the narratives of this book we got the ones of the celebrated family from-Between-Durius-and-Minho-rivers of the Sousas (mainly the ones of the sisters of Don Gonssalo de Sousa, Chamoa Mendes and Ouroana Mendes), the one of the travel in Iraq of the Portuguese knight Rui Babilon (addition of the 1388 recaster), the one of the Castilian family of Lara (with the famous Seven Infant-princes that so much would cause a stir on the Portuguese-Brazilian and Castilian chapbooks). The language can be relatively accessible in many lines despite the difference given by the centuries to the varieties of Portuguese (although there is missing an edition of the whole text into modern Portuguese as far as I know), and there are some more complete description of the landscapes, environments and clothes (yet not prevalent along the text) that paint the tableaux of the Portuguese feudal society and of the environments of the pre-modern Christian Europe and Moor-lands, even lands as distant from Portugal as the Babylon visited by Rui Babilon.
It is llacking a fitting illustrated edition (at least post-medieval one?), but the words illustrate in themselves a fine and fair, as complex, picture of the chivalresque Middle Ages represented, and also of th fictions and legends of fairies, demons, kings, heroes, heroines, villains and villainesses. Besides that, unmissable is the story of the King Ramiro. This Leonese sovereign who did raids in lands of the Durius and the Tagus rivers in Portugal and in Spain fell in love with the sister of the Moorish King Almanzor of Gaia (at the time the border between Christendom and Moor-lands was on the Durius River and Oporto since the 800s was stability Christian and Asturileonese). They got involved despite the Christian King's marriage to a good Christian woman and the Mooress' brother opposing to such relationship. Both cast apart and distanced by the context, did not cease loving each other from afar and in forbidden way. But here is when, one day, the Moorish King kidnaps Ramiro's wife, taking the latter to leave on a rescue mission till Gaia on the other side of the river. The adventure that follows is the one of liberating the legitimate spouse, of new revelations on her and of final union of the Leonese king with the Moorish princess. What is more this is a family legend that turned itself part of the modern folklore of the peoples of Gaia, of Oporto, of Vila Praia de Ancora and of Maia (and of the Maia family that believed itself generated from the union of the Leonese and the Mooress).
Representation of lineages of Christo-Moorish crossing in this book of lineages (source here) 
As I already commented, there exist some spicier, boorish or complex narratives that should have been left outside eventual modern editions of this classic text for younger audiences, but the more curious ones can find them on Wikisource which put online (see starting from this page here; let it be noted that the text is not all digitalised) the text of the publication on the Portugal Monumenta Historia (section Scriptores or "Writers") by Alexandre Herculano (of which there is a study of the books of lineage that can be read on Wikisource here), in some libraries and extracts inserted in several works on the study of Portuguese medieval literature, this specific work, peerage record books in general or severalo other themes or throughout the internet in parts. There exist some translations of this work into Castilian Spanish as I already said, but I believe so that there are not unto other languages not this one (if I am not mistaken). One of the more accessible works in print or in Portuguese libraries is Narrativas dos Livros de Linhagens ("Narratives of the Books of Lineages") by Jose Mattoso, that collects some of the narratives of all the 4 books of lineages (unfortunately in the archaic Portuguese of the time-point) and analyses them in the introducion to each chapter by theme (of origin of narratives or of the family at stake). The essential is not to let fall into oblivion this pioneer text of fiction and of the texts of curiosities and of miscellaneous simultaneously, which are one of the roots on which it built itself the Portuguese and Portuguese-speaking, serving one and again this type of legends, clan braggings, geneologies and narratives of medieval brutalities and rightings of brutals justices for the construction of many narratives come-up thereafter and that may influence and feed the worldview of the readers in ways that not even they themselves sometimes consciously will realise themselves. And that enrichment via-literature is a path that is always worth going through.
The Mattoso collection

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