quarta-feira, 7 de outubro de 2015

"Cosmos de João Fernandes", Luís Filipe Leite // "Cosmos of Joao Fernandes", Luis Filipe Leite

Esta publicação do blogue traz a curiosidade de ter sido escrito por um multifacetado "homem do Renascimento": o "ilustre desconhecido" Luís Filipe Leite foi professor, romancista, contista, escritor de miscelâneas, teorizador da educação (e de métodos para o ensino da leitura, antes de João de Deus), tradutor, ensaísta e biografo. E outra: ao contrário de algumas obras deste blogue que são ou de todo originais ou adaptações bastante soltas, esta é simultaneamente totalmente original e bastante similar a outra anterior; esta obra publicada em folhetins primeiro na revista futuro sob o pseudónimo "Saggitario" e depois na revista Archivo Universal em 1859 tem muitas semelhanças com Jérôme Paturot (folhetim de 1842 originalmente anónimo, publicado em Portugal em 1849 erradamente atribuído a «Hippolyto Rolle» i.e. o jornalista do mundo teatral Hippolyte Rolle, e sem qualquer referência a tradutor, mas de facto autorado por Louis Reybaud). Por fim outra curiosidade: este texto foi bastante bem recebido e bastante lido mas nunca passou das páginas de periódicos para um volume próprio em livro.
  
Os dois "luíses", Filipe Leite e Reybaud, e o suposto autor do Jérôme Paturot Hippolyte Rolle
Já o título o insinua, isto é outro dos romances de "fresco" de sociedade (o cosmos referido terá de ser obviamente um cosmos social e não um espacial), sendo neste caso ainda um romance algo picaresco "de formação" como História de D. Afonso de Brás de José da Fonseca. Ultrapassada essa explicação, será melhor tentar apreciar a obra pelas suas especificidades (os romances que dão uma ideia abrangente de uma sociedade não sendo particularmente únicos, veja-se Os Maias para um dos principais exemplos na nossa literatura, e romances picarescos também abundam), e procurar formas de o ver e analisar mais focadas nas suas especificidades. Para começar, deve-se notar um certo didaticismo na escrita. Ao contrário do comparável (tematicamente) romance do político, jornalista e escritor Reybaud (um romance de costumes essencialmente satírico que o autor queria que servisse como um quadro de crítica do sistema económico e político sob a "Monarquia de Julho", i.e. a monarquia constitucional francesa fundada em 1830-35), Filipe Leite, autor que escrevera várias obras de facto para leitores mais jovens (até abertamente crianças) e que escrevia muitas vezes pensando na compreensão mesmo de obras não infantis para estes (ou não fosse um autor que teorizava sobre como ensinar crianças a ler), faz uma obra que é "activista" de uma forma diferente da de Reybaud, sendo mais moralizante, querendo educar o leitor e juntando a uma engenhosidade na escrita uma prosa compreensível de forma mais ou menos fácil e algo coloquial e que tenta ser mais fortemente espirituoso, como dá exemplo a abertura «As linhas mais difíceis de se escreverem em tudo que não seja uma carta, são apenas duas, a primeira e a última» (embora Jérôme Paturot não deixe de ter uma qualidade de fábula moral, o espírito irónico sobrepõe-se ao tom moralizador). Esse didaticismo acaba por definir não só o estilo e tom do livro mas o seu fluir.
Portadas de uma edição francesa do inspirador de Cosmos..., Jérôme Paturot
Igual ao romance de Reybaud, este folhetim centra-se numa personagem-título (num caso Paturot e aqui João Fernandes) que quer criar uma posição na vida para si próprio, começando como jovem que busca através de todos os meios possíveis e imaginários escapar à sua ocupação presente, a de camiseiro. No caso da obra de Leite, o protagonista chega a Lisboa esperando fazer a sua sorte (isto não é explicitamente dito, mas o autor descreve ironicamente como um local que parece Portugal em tudo mas que isso não interessa verdadeiramente para o caso, que a língua aí falada cada vez menos parece Português, e que a cidade é uma capital à beira «da foz de um dos mais bellos rios do mundo», o que dá pena pensando no estado actual do rio). A via que ele busca, a princípio, é tentar tornar-se "mais interessante" através de tentar dar a si próprio perfil de herói romântico e de figura "maior que a vida", metendo-se a tentar obter todas as excentricidades para que essas lhe dessem uma certa visibilidade pública. Assim ele passa pelo dândismo de seguidor da filosofia Romântica e aspirante a poeta, por convívio com filósofos socialistas mais palavrosos que realmente revolucionários activos (no paralelo francês de Reybaud, o alvo era especificamente o saint-simonianismo, o socialismo utópico primitivo e experimentalista pregado pelo Francês Conde de Saint-Simon, mas com o socialismo nos primórdios em Portugal e mais conhecido enquanto conceito pelo que se lia de lá fora que praticado cá dentro, o alvo escolhido por Filipe Leite é simplesmente chamado socialismo, e surge mais como tendência filosófica que tendências de experimentação social e organização de comunas e algum filantropismo), e muitas outras excentricidades médio-oitocentistas.
Ilustração do Jérôme... que mostra o nosso herói com um amigo, na sua fase dândi
O esforço de João Fernandes de atingir visibilidade é só parcialmente atingido, conseguindo algum conhecimento mas que lhe serve mais como rampa de lançamento para actividades essas sim mais lucrativas para si, como se vê na segunda parte da obra, em que (como no equivalente Francês) surge como homem maduro e que já viveu os primeiros amores maduros e é agora alguém instalado economicamente com trabalho comercial, mas logo vê-se atraído por novo apelo de sucesso maior, de fortuna rápida e abundante e de sucesso mundano, na política activa, sob um tio que lhe serve de protector (e o criara desde que perdera os pais em criança e fora quem lhe dera o desejo de ser «rico como um nababo»). O texto é acima de tudo sobre esforço vão, sobre ambições pessoais e "fome" por sucessos e lucros fáceis, e assim dá uma espécie de exemplo pela negativa, dos fins que são pelo contrário correctos e da forma mais saudável de viver e agir. O tom da narrativa (narrada na primeira pessoa pelo próprio João Fernandes, ao contrário do romance francês similar narrado por alguém que aparenta ter conhecido Paturot pessoalmente, dando assim Leite a ideia de estar, como homem agora mais sábio e moralizado a recontar uma fase menos ilustrada da sua vida) é assim dado não por uma "pregação directa" do que é certo mas pelo contra-exemplo do mau e por isso o romance não é "pesado" no seu moralismo porque o enredo é interessante e deixa-nos depreender a moralização pelo que nos diz o enredo.
Um abraço romântico numa ilustração do Jérôme... original
Este romance modesto mas interessante pode ser moralizante e didático, mas não pensem que não moraliza e ensina também contra o religiosismo hipócrita ou frouxo que influencia muito moralismo e didaticismo. Como exemplo, veja-se a narração no III capítulo (curto como todos os outros 13 deste texto "corrido") da sua infância e como na sua terrinha tradicional em que desde tempos antigos (em que a Igreja era mais forte) era usual um interesse parolo pelo Latim, dando-se louvores a qualquer um que introduzisse alguns termos latinos na conversa com ou sem contexto porque isso era considerado uma preparação para servir auxiliando os padres na missa, o que era levado muito a sério como coisa em que ninguém queria fazer má figura. Que apesar do fraco estudo de Latim devido a esse parolismo quanto ao Latim, ele consiga aprender o suficiente para se entusiasmar com o poeta satírico Horácio ou historiadores Romanos (apesar de não conseguir perceber «um metro», belo trocadilho com a métrica poética, da poesia de Virgílio).
Mesmo que possa ser uma caricatura algo injusta e que esqueça a força da motivação fé subjacente a este factóide ridículo do Latim, ele serve como exemplo das anedotas e narrativas que vão enriquecendo o enredo em si de Cosmos de João Fernandes, mostrando o talento do autor para o episódico e os pequenos comentários, servindo todos para cumprir o fim de fazer comentário sobre uma ou outra falha social, pecadilho, ridicularia ou outra coisa qualquer condenável. Estas características podem aparecer de forma muito bem cuidada e pessoal neste romance de Luís Filipe Leite, mas na verdade nós vemos estes traços largos em toda a literatura do século XVIII e XIX, dentro e fora de Portugal, na evolução da novela e do romance iniciais, numa altura em que a visão da literatura ocidental oscilava entre o iluminismo vindo do século XVIII, o liberalismo que ainda se vinha impondo desde o final do século anterior e o puritanismo protestante e católico da Contra-Reforma do século XVII, com a vitória de uma destas correntes ainda não definitivamente marcada. Mesmo hoje, em que os restos de iluminismo e liberalismo marcam mais as nossas visões pessoais, um texto de uma época de um liberalismo ainda a implantar-se e com o puritanismo religioso ainda vincado, ainda pode ser um texto com alguma força porque este comenta sobre a sociedade de cidadania, de Igreja socialmente influente e de economia de mercado que ainda é aproximadamente a nossa nos nossos dias. Quem o quiser ler poderá encontrar em-linha na digitalização do tomo I da Archivo Universal no Google Livros, podendo ser lido nas páginas 35 a 37, 53-55, 71-73, 89-92, 106-107, 120-122, 134-136, 154-155, 170-173, 186-189, 203-204, 277-280 e 411-412 deste. E se um folhetim merecia ser recuperado para um livro próprio, este é certamente um deles.


This blog post brings the curiosity of having been written by a multifaceted "Renaissance man": the "illustrious unknown" Luis Filipe Leite was a teacher, novelist, short-story writer, miscellany-books writer, education theorist (and of reading methods, in Portugal before Joao de Deus), transltor, essay-writer and biographer. And another: unlike some works on this blog that are or at all original or rather loose adaptations, this one is simultaneously a totally original and quite similar to the previous one; this work published in feuilletons first on the Futuro ("Future") magazine under the "Saggitario" pen-name and afterwards on the Archivo Universal ("Universal Archive") magazine in 1859 has many similarities with the Jérôme Paturot (1842 feuilleton originally anonymous, published in Portugal in 1849 wrongly attributed to «Hippolyto Rolle» i.e. the theatre world journalist Hippolyte Rolle, and without any reference to translator, but in fact authored by Louis Reybaud). At last another curiosity: this text was rather well received and quite read but never passed from the pages of periodicals into proper volume on book.
  
The two "louises", Filipe Leite and Reybaud, and the Jérôme Paturot's supposed author Hippolyte Rolle
Already the title insinuates it so, this is another of the society "fresco" novel (the cosmos refered will have to be obviously a social cosmos and not a space one), being in this case a somewhat picaresque Bildungsroman novel like História de D. Afonso de Brás/"Story of Don Alphonse Blas" by Jose da Fonseca. Overcome that explanation, it will be better to try to appreciate the work for its specificities (the novels that give a wide-ranging view of a society not being particularly unique, let one see Os Maias/The Maias for one of the main examples in Portugal's literature, and picaresque novels also abound), and look for ways to see and analyse it more focused in its specificities. For starters, it must be noticed a certain didacticism in the writing. Unlike the (thematically) comparable) novel from the politician, journalist and writer Reybaud (an essentially satirical novel of manners that the author wanted to serve as a tableau of criticism of the economical and political system under the "July Monarchy", i.e. the French constitutional monarchy a monarquia constitucional francesa founded in 1830-35), Filipe Leite, author who had written several works in fact for younger readers (even openly for children) and who wrote many times thinking on the understanding even of not children's works for them (or were he not an author who theorised n how to teach children to read), makes a work that is "activistic" in a different way to Reybaud, being more moralising, wanting to educate the reader and adding to an ingenuity in writing a comprehensible prose in way more or less easy and somewhat coloquial and that tries to be strongly witty, as gives example of the opening «The harder lines to write in everything that not be a letter, are just two, the first and the last» (although Jérôme Paturot does not cease having a quality of moral fable, the ironic tone overrides the moralising tone). That didactivism ends by defining not only the style and tone of the book but its flow.
Ported-covers to a French edition of the Cosmos... inspirer, Jérôme Paturot
Just like the Reybaud novel, this feuilleton centers itself on a title character (in one case Paturot and here Joao Fernandes) who wants to create a position in life for himself, starting as youngun that searches through all the possible and imagined means to escape to his present occupation, the one of shirtmaker. In the case of Leite's work, the lead arrives to Lisbon awaiting to make his own luck (this is not explicitly said, but the author describes ironically as a place that seems like Portugal in everything but that that does not truly matter for the case, 'cause the language there spoken each time less does look Portuguese, and in which the city is a capital by «the mouth of one of the world's fairest rivers», what gives one pity thinking on the river's current state). The pathway that he searches for, at first, is to try to become "more interesting" through trying to give himself profile of romantic hero and "bigger than life" figure, putting himself into trying obtaining all the excentricity so that those gave him a certain public visibility. So he passes by the dandyism of follower from Romantic philosophy and aspirant poet, by hangings-ons with socialist philosophers more wordy than truly active revolutionaries (in Reybaud's French parallel, the targed was specifically santi-simonianism, the early and experimentalist utopian socialism preached by the French Count of Saint-Simon, but with the socialism in its earliest days in Portugal and more know while concept through what was read from outside, than practiced in here, the target chosen by Filipe Leite is simply called socialism, and comes-up more as philosophical trend than social experimentation tendencies and commune organisation and some philantropism), and many other mid-eighteen-hundredth excentricities.
Ilustration from the Jérôme... which shows our hero with a friend, on his dandi phase
Joao Fernandes' effort to read visibility is only partially achieved, getting some notice but that serves him more as launchpad for activities now those more lucrative for himself, as it can be seen in the work's second half, in which (as in the French equivalent) h comes-up as a mature man who already lived the first mature loves and is now settled in economically with commercial work, but right-away sees himself attracted by new calling of great success, of fast and abundant fortune and of worldly success, into active politics, under an uncle who serves him as protector (and had raised him since he lost his parents as a child and had been who had given him the desire of being «rich as a nawab»). The text is above all on vain effort, on personal ambitions and "hunger" for successes and easy profits, and so gives a kind of example in the negative reverse, of the ends that are on the contrary correct and of the healthies way to live and act. The tone of the narrative (narrated on the first person by Joao Fernandes himself, unlike the similar French novel narrated by someone who seems to have known Paturot personally, so giving Leite the idea of being, as now wiser and more moralised man recounting a less illustrated phase of his life) is so given not by a "direct preaching" of what is right but on by the counter-example of the bad and for that the novel is not "heavy" in its moralism because the plot is interesting and lets us surmise the moralisation by what tells us the plot.
A romantic embrace on an illustration from the original Jérôme...
This modest but interesting novel can be moralising and didactical, but do not think that it does not moralise and teach against the hypocritical or flabby religionism that influences much moralism and didacticism. For example, let one see the narration on the III chapter (short as all the other 13 from this "hasty" text) from his childhood and how in his traditional little hamlet in which since ancient times (in which the Church was stronger) it was usual a hick interest for Latin, giving one praises to any one who introduced some Latin terms into the conversation with or without context because that was considered a preparation for serving in aiding the priest in mass, what was taken very seriously as thing in which nobody wanted to make a fool of one's self. That despite his weak study of Latin due to that hickism about Latin, he can learn enough to excite himself with the satirical poet Horace or Roman historians (despite not getting «one metter», nice wordplay with poetic metrics, of Virgil).
Even if it might be a somewhat unfair caricature and it be forgotten the strength of faith motivation underlying to this ridiculous Latin factoid, it serves as example of the jokes and narratives that go enriching the Cosmos de João Fernandes/"Comos of Joao Fernandes" plot in itself, showing the author's talent for the episodic and the little commens, serving all to fulfill the end of making comment on one or another social flaw, pecadillo, ridiculous tiny-thing or other more condemnable thing. These characteristics may appear in quite well cared-for and person way in this Luis Filipe Leite novel, but in truth we see these broad strokes in all the literature from the 18th and 19th century, inside and outside Portugal, in the evolution of the early novella and novel, at a time-point in which western literature's vision oscillated between the enlightenment come from the 18th century, the liberalism that still came imposing itself since the ending of the previous century and the 17th century's Protestant and Counter-Reform Catholic puritanism, with the victory of one of these currents not yet definitely marked. Even today, in which leftovers of enlightenment and liberalism mark more our personal views, a text from a time of a still implementing itself liberalism and with a religious puritanism still creased, still can be a text with some strength because the former comments on the society of citizenship, of socially influential Church and of market economy that still is approximately the one from our days. Who would want to readit, will be able to find online within digitalisation of the tome I of the Archivo Universal at Google Books, being able to be read on the pages 35 to 37, 53-55, 71-73, 89-92, 106-107, 120-122, 134-136, 154-155, 170-173, 186-189, 203-204, 277-280 and 411-412 of the former. And if one feuilleton deserved to be recovered for a book of its own, this is certainly one of them.

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