Última publicação, último livro. Assim o nosso blogue chega ao fim (pelo menos de uma eventual primeira série. Mas já aí vamos), e para acabar em beleza, voltamos a outro "unicórnio" raro e especial da literatura portuguesa, o género não dos mais cultivados cá até há poucas décadas atrás, do romance de fantasia infantil. História Extradordinária de Iratan e Iracema -- os meninos mais malcriados do mundo de Olavo D'Eça Leal foi publicado em 1939, como uma compilação de 38 textos que foram lidos pelo autor no programa Meia Hora de Recreio na Emissora Nacional portuguesa pouco antes da publicação, com bastante sucesso (embora só esgotando a 1.ª edição, não havendo mais nenhuma até 44 anos depois), e na altura era uma excepção na literatura portuguesa e um dos poucos na literatura infanto-juvenil mundial que fugiam a uma certa intenção moralizante e além do uso do maravilhoso fantástico, tinha uma certa inclinação para bizarria e surrealismo, de forma comparável aos dois livros de Alice de Lewis Carroll (e de forma que na década seguinte, como já vimos, surgiria na literatura portuguesa sob a forma a duologia Dona Redonda de Virgínia de Castro e Almeida), e louvando de certa forma um certo carácter "anarca" das crianças em relação às regras adultas (os heróis são «os meninos mais malcriados do mundo» e estes nunca são "corrigidos" pelo curso da estória). Na literatura infanto-juvenil do Estado Novo (principalmente naquela sob nome próprio e sem simulação de "pseudo-tradução" de original estrangeiro) este livro era uma feliz anomalia que foi por isso bem recebida pelos jovens (e mais velhos) leitores.
O livro começa com um irmão e uma irmã (que têm curiosamente nomes que nos fazem pensar no Brasil, facto que não é abordado, apesar de aperecer alguma influência de folclore brasileiro no texto, com referências à personificação «Bicho Careta» ou ao «Sássí-Pêrêrê»; a bem dizer o livro não é especificamente localizado em Portugal, ou mesmo no Brasil, parecendo até ambos e ganhando uma aura de universalidade por isso) que têm uma existência rotineira junto com os primos num mundo normal algo cinzento, do qual se refugiam pelo sonho. Assim, um belo dia decidem desviar-se do caminho do costume para a escola em busca de uma Moura encantada num poço, e depois de encontrarem um desconhecido de ar ameaçador que lhes pergunta indicações para a aldeia próxima e se afasta, fogem temendo «cúmplices» do mesmo, e depois de encontrarem um lobo que conta a Iratan que era um jovem roubado de casa e embruxado em lobo por uma bruxa, os 2 irmãos perdem-se nos seus sonhos, indo ter a mundos fantasiosos fora do normal, vivendo através deles aventuras extraordinárias. Estes dois meninos pouco louváveis são de facto heróis dignos neste livro e personagens vivas (que, segundo insinua a dedicatória que abre o livro, devem esta "vida" a serem "desenhados" sobre as personalidades do próprio autor e do seu filho Paulo Guilherme d'Eça Leal).
Olavo D'Eça Leal ante um microfone da Emissora Nacional
Voltando ao enredo, as suas aventuras passam-se através de mundos com algo de fábula e outros imaginários folclóricos e tradicionais: embora eles passem por muitos mundos e fenómenos da criação da imaginação do autor (incluindo um palácio encantado misterioso, na verdade a versão transformada pela imaginação do seu casarão de aldeia com um criado que pode ou não estar já morto), e um livro enorme «das Horas Mais Mortas do Que Vivas...» (trocadilho com os livros de horas) escrito pelo avô poeta dos irmãos (que Iracema conjectura como tendo sido roubado pelo «Sássí-Pêrêrê» da Biblioteca Imperial de Viena, local que ela não tem certeza de existir excepto por «Em Viena existiram imperadores e bibliotecas», nada impedindo «que haja [...] uma biblioteca Imperial»; por curiosidade existe, mas é só "Nacional Austríaca" desde 1920); uma Cidade do Silêncio onde os locais os perseguem por fazerem barulho e donde só se safam com a ajuda de um tal de Pássaro Bisnau e o conseguir da chave da cidade duma fortaleza de ferro onde conhecem personificação como «o Bichinho do Ouvido», «o Bicho Careta, o Bicho Carpinteiro, o Bicho Homem, o Bicho da Cozinha, o Bicho de 7 Cabeças (que não era tão feio como o pintavam) [...] os Macaquinhos do Sótão [...] e [...] o Coca Bichinhos» e passam por uma sala que tem o cosmos lá dentro; enfrentam uma tempestade provocada por um peixe-espada voador que afinal é um faquir com ambições de ser mau-da-fita e de conseguir a pedra filosofal (e transformar tudo em ouro); são descobertos e cercados na floresta por bruxas de chapéus altos bicudos e grande "pencas" tradicionais (a quem, tentando impedi-las de lhes fazerem mal antes do nascer do Sol, que as mandaria embora, Iratan entretem com a estória de uma ilha da verdade em que quem sabe mentir "é rei"); passam pelo inferno da mitologia grega com mistura de catolicismo à Dante mas em que infernal só a maçada de nada acontecer lá (e com barqueiro Caronte, cão de 3 cabeças Cérebro à porta e rio do esquecimento à volta, depois do qual compram memórias de volta de um vendedor de memórias, entre as quais tem à venda a memória de Pedro Sem ou Cem do folclore luso); conhecem a estória da busca fracassada pela liberdade do Príncipe Ivan do folclore russo (que ouvem da memória do mesmo, no mesmo episódio do vendedor de memórias) e um País dos Sonhos (com poucos habitantes porque pouca gente sonha) onde nem a Rainha de tal país acredita nas peripécias da viagem dos dois irmãos. Depois voltam ao mundo real, sendo descobertos pela família a dormir sobre a última página do «Livro das Horas Mais Mortas do Que Vivas».
Um ponto curioso do livro é como os dois irmãos têm entre si um laço quase romântico (pode-se bem comparar com o romance infantil entre Kai e Gerda em A Rainha da Neve de Hans-Christian Andersen, com o seu elemento de crianças com um laço forte entre si e que vêm este laço ameaçado mas que acaba por não quebrar). O texto é complementado por várias ilustrações de Paulo Ferreira, um dos mais principais artistas da segunda geração da arte Modernista portuguesa que fora um dos principais artistas que trabalhavam para o Estado durante o Salazarismo no seio da "Política do Espírito" do homem da cultura de Salazar, António Ferro. Enfim, apesar de no todo ser um livro atípico dos meados do século XX, fora do moralismo da literatura da época (e mesmo da maioria da literatura do género infantil/infanto-juvenil da I República), Iratan e Iracema recebeu no ano de publicação um dos prémios do Secretariado de Propaganda Nacional (o equivalente do Ministério da Cultura do princípio do Estado Novo), o Prémio Maria Amália Vaz de Carvalho para literatura infantil. Em 1987, um filme foi adaptado pelo próprio filho do autor (a quem o livro foi dedicado), Paulo Guilherme (que no seu trabalho em cinema curiosamente surge à vez como somente Paulo Guilherme ou pelo nome completo). O filme é uma raridade hoje, foi só um pouco visto (embora muito publicitado) na altura, mas passou com algum sucesso como minissérie em 1987 e 1988. Além de algumas audiências, este filme ganhou o Troféu de Ouro do Festival de Cinema dos Países de Língua Oficial Portuguesa, Aveiro em 1988.
Paulo Guilherme d'Eça Leal
O livro, esse é bastante mais fácil de encontrar em bibliotecas, existindo por vezes quer em exemplares da 1.ª edição da editora Romano e Torres (ou da 2.ª edição facsímile de 1983 da 1.ª), quer na 3.ª edição de 1987 da Pensamento associada ao filme e com páginas finais dedicadas à história da produção da adaptação e fotogramas do mesmo. Existem ainda uma edição nova com ilustrações e capa novas de 2002 e de 20?? com as ilustrações originais de Ferreira, ambas da Vega (editora que deve ser louvada pelo esforço de relembrar este outro clássico esquecido do género da literatura infanto-juvenil em Portugal).Mas o fim desta publicação traz-me a uma questão importante. Na 1.ª publicação eu colocava a questão de uma possível 2.ª série deste blogue, dependente do sucesso do mesmo. Ora, por esta altura eu tive umas razoáveis mas nada extraordinárias quase 800 visualizações, mas 0 comentários. Ora, se ninguém de quem tem andado a seguir isto comentar até este Sábado às 12 da tarde, ficamos por aqui, adeus até nunca mais, e foi um prazer fazer esta viagem convosco. Se alguém comentar, começamos ainda esta semana.
Last post, last book. So our blog reaches the end (at least for an eventual first series. But we'll get there), and to end handsomely, we go back to another rare and special "unicorn" of Portuguese literature, the genre not among the most cultivated here till a few decades ago, the children's fantasuy novel one. História Extradordinária de Iratan e Iracema -- os meninos mais malcriados do mundo ("Extraordinary History of Iratan and Iracema -- the rudest little-children in the world") by Olavo D'Eça Leal was published in 1939, as an epithome of 38 texts that were read by the author in the program Meia Hora de Recreio ("Half an Hour of Recess" or "Half an Hour of Recreation") in the Portuguese Emissora Nacional ("National Broadcaster") radio little before the publication, with quite a success (although only running out of books the 1st edition, not being any other till 44 years afterwards), and at the time it was an exception among the Portuguese literature and one of the few in the world children's/young-people's literature that did escape a certain moralising intent and beyond the use of the fantastical wondrous, it had a certain leaning towards bizareness and surrealism, in way comparable to the two Alice books by Lewis Carroll (and in way that in the following decade, as we already saw, would come up among the Portuguese literature under the form of the Lady Round duology by Virgínia de Castro e Almeida), and praising in certain way a certain "anarcho" character of the children in relation to the grown-up rules (the heroes are «the rudest little-children in the world» and these are never "corrected" by the story's course). In the children's/young-people's literature of the Portuguese New State (mainly in that one under one's name and without simulation of "pseudo-translation" of foreign original) this book was a happy anomaly that was for that well received by the young (and older) readers.
The book starts with a brother and a sister (who got curiously names that make us think of Brazil, fact that is not dealt with, despite of appearing some Brazilian folklore influence in the text, with reference to the personification «Bicho Careta» («Poor Critter») or the «Sássí-Pêrêrê»; properly stated the book is not specifically located in Portugal, or even in Brazil, seeming even both and gaining an aura of universality for that) who got a routine existance with the cousins in a world somewhat grey, from which they do take refuge for themselves through dreaming. So, one fair day they decide to wander off the usual path for school in search of an enchanted Mooress in a well, and afterwards finding a John Doe of threatening look who does ask them for directions for the nearby village and wanders off, they run away fearing «accomplices» of the former, and afterwards meeting a wolf that tells to Iratan that he was a young-man stollen away from his home and bewitched into wolf by a witch, the 2 siblings lose themselves into their dreams, going to get to fantasious worlds out of the ordinary, living through them extraordinary adventures. These two barely commendable little-children are in fact worthy heroes in this book and lively characters (that, according to insinuating of the dedication that opens the book, owe that "liveliness" to being "drawn over the personalities of the author himself and of his son Paulo Guilherme d'Eça Leal).
Olavo D'Eça Leal before a microphone of the Emissora Nacional
Going back to the plot, their adventures transpire themselves through world with something of fables and other folkloric and traditional imaginariums; though they pass by several world and fenomenons out of the creation of the author (including an mysterious enchanted palace, in truth an imagination transformed version of the village manor house with a man-servant who may or may not be dead), and an enormous book «of Hours More of Deadtime than Of Uptime...» (wordplay with the books of hours) written by the poet grandfather of the siblings (which Iracema conjectures as having been stollen by the «Sássí-Pêrêrê» out of the Imperial Library of Vienna, place that she did not quite held as certain that it existed except for «In Vienna there existing emperors and libraries», nothing preventing «that there be [...] an Imperial libary»; by curiosity it exists, but it is just "Austrian National" since 1920); a City of the Silence where the locals chase them for making noise and from where they only get away with it from with the help of some Bisnau Bird and the getting of the key of the city from a fortress of iron where they meet the critter-based personifications of the «Sylph that Winds Up Someone», «the Poor Critter, the Ant Bedbugs In One's Pants, the Human Beast, the Cooking Bug, the Snake with Seven Heads (which was not as much of a hydra-headed problem as it was made up to be) [...] the Monkey Business Toys in the Attic [...] and [...] the Perfinnikiniety1» and pass by a room that has the cosmos in there; they face a storm provoked by a flying swordfish that afterall is a fakir with ambitions of being a-bad-guy and of getting the philosopher's stone (and transforming everything into gold); are discovered and surrounded in the forest by witches in traditional pointy high hats and big "schnozes" (to whom, trying to prevent them of harming them before the rising of the Sun, that would cast them away, Iratan entertains them with the story of an island of truth in which who knows how to lie "is king"); they pass by the hell of the Greek mythology with admixture of Catholicism Dante-style, but in which infernal is only the bother of nothing happening there (and with the boatman Charon, 3 headed dog Cerberus at the door and river of forgetfulness around it, after the which they buy memories back to a salesman of memories among which he has for sale the memory of Pedro Sem or Cem from Portuguese folklore); they get to know the story of the failed search for freedom of the Prince Ivan from Russian folklore (which they hear out of the memory of he himself, in the same episode of the salesman of memories) and a Country of Dreams (with few inhabitants because few people dream) where not even the Queen of such a country believes in the mishaps of the voyage of the two siblings. Afterwards they come bck to the real world, being discovered by their family sleeping over the last page of the «Book of Hours More of Deadtime than Of Uptime».A curious point of the book is how the two siblings have amongst themselves a bond almost romantic (it can well be compared with the childre's romance between Kai and Gerda in The Snow Queen by Hans-Christian Andersen, with its element of children with a strong bond amongst themselves and that see that bond threatened but it ends up by not breaking-downc). The text is complemented by several illustrations by Paulo Ferreira, one of the main artists of the second generation of the Portuguese Modernist Art who had been one of the main artists who worked for the state during salazarism in the midst of the "Politics of the Spirit" of the man of culture of Salazar, António Ferro. All in all, despite of being in the whole an atypical book of the mid of the Portuguese 20th century, outside the moralism of literature of the period (and even of the majrity of the literature of the children's/children's & young-people's genre from the Portuguese 1st Republic), Iratan e Iracema received in the publication year one of the prizes of the National Propaganda Secretariate (the equivalent to the Ministry of Culture of the beginning of the Portuguese New State), the Maria Amália Vaz de Carvalho Prize for children's literature. In 1987, a film was adapted by the author's own son (to whom the book was dedicated), Paulo Guilherme (who in his work in cinema curiously appears at turns just as Paulo Guilherme or by the full name). The film is a rarity today, it was just a little seen (although very publicised) at the time, but aired with some success as miniseries in 1987 and 1988. Besides some ratings, this film won the Troféu de Ouro ("Gold Trophy") of the Portuguese Language Countries' Film Festival, Aveiro, in 1988.
Paulo Guilherme d'Eça Leal
The book, that is quite easier to find in libraries, existing sometimes either in copies of the 1st edition of the Romano e Torres publisher (or from the 1983 facsímile 2nd edition of the 1st one), or in the 3rd edition from 1987 by the Pensamento publisher associated with the film an with the final pages dedicated to the history of the film adaptation and screenshots of it. It exists yet a new edition with illustrations and new covers from 2002 and 20?? with the original illustrations by Ferreira, both by Vega (publisher that must be praised for the effort of remembering this other forgotten classics of the children's/young-people's literature genre in Portugal).But the ending of this post brings me to an important question. In the 1st post I put the issue of a possible 2nd series of this blog, depending on the success of the same. Well now, by this time I had some reasonable but nothing extraordinary near 800 views, but 0 comentaries. Well now, if no one from who has been following this comments till this Saturday at 12 p.m., we stick here, goodbye, see you never, and it was a pleasure to do this journey with you. If anyone comments, we start still this week.
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