"As Minas de Salomão": tradução ou obra original?

Comecemos por abordar abordagens (passa a aliteração) à tradução. Podemos separar (simplificando um pouco a coisa) três abordagens possíveis: de forma mais simplista/purista, a que acredita na tradução como algo literal e sem nuances, de títulos, palavras e nomes; de forma mais anti-purista acreditam que uma tradução é sempre uma obra original e uma tradução de um livro Inglês para Português tornasse uma 'obra original' portuguesa (e portanto não haverá grande necessidade de ter preocupação absoluta de fidelidade), e depois uma abordagem (que admito ser aquela com que concordo pessoalmente a minha) que é purista mas não simplista, porque reconhece por um lado a natureza da língua do texto original, mas conhecendo a natureza da língua de chegada, tenta ao mesmo tempo que mantêm fidelidade, fazer que o texto seja tão natural na tradução como é no original, e tente reproduzir pela 'pena' do tradutor a forma como a 'pena' do escritor escreveu, escrevendo o máximo possível como o autor do original escreveria se tivesse vivido no país da tradução como nativo da língua local.
Ora, o que entalha esta terceira abordagem? Primeiro, que se tente reproduzir na língua de chegada o tom da língua de origem do texto: se o texto original usar calão não podemos usar linguagem formal ou erudita, se a linguagem for datada no original então devemos traduzir com linguagem datada da língua da tradução (excepto se a ideia da tradução for à partida a de uma modernização de texto, claro), se usar calão regionalista, não podemos usar linguagem standard nacional. Podem-se fazer cedências quanto a isto, claro, em casos em que o seguir à risca da natureza da linguagem original leve ao tornar do texto da tradução mais imperceptível para o leitor da tradução do que era para o leitor do texto original. Porém, se o texto original já for algo críptico para o leitor nativo dessa língua, manter essa dificuldade para o leitor da tradução é algo 'justo' (seria injusto dar essa vantagem de facilitismo para o leitor não original, não seria?). Ora, tendo coberto a questão geral da tradução, analisemos o texto de Queirós, em relação a Haggard.
Se pode ser injusto quase não referir Haggard em Portugal (muitas vezes este livro ao longo do século XX foi dado com indicação só de Eça como autor, quase só nos anos de 1990 surgindo numa capa "Rider Haggard/Eça de Queirós"), visto que o enredo é puramente Haggard, e se o Inglês nunca tivesse pensado no enredo deste livro, Eça nunca teria pensado num livro assim, simultaneamente, quando comparamos o texto original de ambos... Como dizem alguns, Eça terá mais 'traído' que 'traduzido' o original Haggardiano; está tanto no limiar da tradução que chamar-lhe versão ou adaptação poderá ser mais factual, e listar As Minas de Salomão entre as obras de Eça até em colecções de obras completas pode parecer estranho (de tanto que destoa de quase toda a sua bibliografia), mas é compreensível (num parênteses interressante, também o autor de aventuras clássico Italiano Emilio Salgari, o "pai" de Sandokan, foi autor de uma versão muito derivativa, outra 'tradução livre', d'As Minas do Rei SalomãoLe caverne dei diamanti).
Temos de ver isto como a questão de não ser um 'simples' tradutor, bom ou mau, a traduzir um autor (sem ofensa para tradutores), como é frequente: aqui, um autor com um estilo de mestria na escrita traduz outro autor com estilo de mestria na escrita: Eça, um dos exponentes máximos do Realismo oitocentista português e mundial (assim reconhecido pelo romancista Naturalista Francês Émile Zola e por críticos do Observer londrino), com aquele seu estilo (irónico, finamente escrito e com descrições longas, detalhadas e vívidas e enredos que se moviam com relativa rapidez e transmitiam as mensagens sociais ou éticas desejadas pelo autor), estava a traduzir um autor também com um seu estilo (também dado a descrições vívidas e prolongadas, talvez menos 'pornografia de mobília', porém, descrições que só são contidas nos três romances que Haggard co-escreveu com o folclorista e escritor Escocês Andrew Lang, e cujos enredos eram mais enérgicos e aventureiros e que mesmo quando 'paravam' para exposição tinham uns diálogos e linhas de raciocínios elas próprias excitantes e que mantinham o enredo vivo até ao retorno à acção). Não esqueçamos ainda as diferenças nacionais/culturais e lealdades opostas de ambos os autores: de termos de um lado um Português cosmopolita mas ainda algo tradicionalista e patriótico, e um Britânico patriótico acima de tudo mas viajado e não sem críticas do colonialismo e louvores dos indígenas Africanos e de culturas pré-modernas.
Como tal, é inevitável que um autor com um estilo tão personalizado, tão vivo, como Eça, e que não tenha (que se saiba) traduzido mais nada na sua vida, nesta sua oportunidade não tenha 'resistido' a escrever um King Solomon's Mines "queirosiano". É assim frequente a crítica em Portugal dizer que Eça 'melhorou' e enriqueceu o original de Rider Haggard com o texto executado por Eça como suposta 'mera' tradução (embora isto resulte de uma certa 'caricatura' da escrita de Haggard, que na verdade é mais talentosa e viva do que parece). Um caso similar, mas de passagem de Português para uma língua estrangeira, é a tradução francesa d'A Selva de Ferreira de Castro pelo poeta e prosador Suíço Blaise Cendrars (intitulada Forêt vierge), que, principalmente no mundo francófono é considerada superior ao original. O que distingue estas traduções 'superiores ao original' (incluíndo o Le caverne dei diamanti salgariano) da simples tradução não muito fiel (para além da sua qualidade, claro)? Essencialmente, a grande presença de uma perceptível "mão" do estilo do autor da tradução quando comparado com o original e a restante obra (original) do tradutor, sendo quase um romance do tradutor, que faz quase esquecer o universo do autor e junta a tradução muito livre ao universo da obra do autor tradutor. Mas porque é que Eça quis sequer traduzir este livro, visto que nunca se dera a traduzir?
Para começar, devemos saber que Eça traduziu o livro em folhetins para uma revista (por ele dirigida), a Revista de Portugal, editados a partir de Outubro de 1889 (tinha o romance de Haggard então já 4 anos e sucesso em Inglaterra e parte do mundo), sendo publicado o texto em livro dois anos depois. Essa revista (que se popularizava a princípio com discussões políticas, económicas e culturais) tentava expandir o público, querendo atrair público mais popular, feminino e jovem com uso de mais ficção, folhetins, artigos ligeiros, dando uma oferta de "romances de arlequim", textos de aventuras, estórias para crianças, paródias e afins. A partir dos anos de 1880, Eça vivia frequentemente no "fio da navalha" em termos económicos (e mesmo noutros termos), devido às relações por vezes conflituosas com os seus editores (em torno principalmente dos direitos de autor) e apertos de finanças com as responsabilidades familiares (depois de casar e tendo em conta que residia na cara cidade de Paris a partir de 1888), sendo assim tudo isto que o levou a colaborar na imprensa frequentemente e organizar almanaques para aumentar o seu orçamento, vindo daí a criação da dita revista (que também lhe permitiam intervir de forma frequente com o público leitor português). E para escolha de tema para folhetim para fidelizar novos públicos, este era natural porque, basicamente, África estava 'na moda', por isso era um óptimo tema para fidelizar leitores.
Para além desse incentivo comercial para a tradução, Eça era um conhecido anglófilo (ou melhor dizendo, franco-anglófilo), o que era raro na altura (a francofilia era 'rainha' dos 'ilustrados' de Portugal quase até ao final do século XX), e tendo provavelmente lido o original numa das suas viagens ao estrangeiro, percebe-se que tenha escolhido traduzir dos livros mais excitantes de Haggard (que sendo um autor do qual uma grande fama chegava de lá de fora já a Portugal, mas não havia traduções em Português já disponívels), com a sua mais famosa personagem, e o tipo mais célebre do Grão-Bretão daquela época, o great white hunter (grande caçador branco) Allain Quartermain (embora Eça lhe mude o nome, já lá vamos), apesar de inspirado tanto no caçador Inglês Frederick Courtney Selous e no relato de viagem à terra Massai do Escocês Joseph Thomson, como no aventureiro Americano (embora mais tarde membro do Exército Colonial Britânico) Frederick Russel Burnham.
Ora essa era outra razão de Eça pegar no texto: África e Britânicos. Os Portugueses andavam desde os anos de 1880 'loucos' por África, com a hipótese de um Portugal renovado por uns novos Descobrimentos, agora pelo interior de África, e a perspectiva de uma grande África Portuguesa que fosse uma nova Índia e um novo Brasil, e 1889 vinha no seguimento das explorações de Capelo e Ivens e de Serpa Pinto através dos chamados sertões de África (de outros exploradores Portugueses, e imediatamente antes do Ultimato Britânico (que ainda 'assombrava o patriotismo português quando a tradução/adaptação queirosiana foi editada em livro em 1891), e portanto Portugal estava ainda mais 'sequioso' de África visto que esta lhe era 'impedida' pelos Britânicos, e como tal a ideia de ler sobre Britânicos a explorar África (mesmo que em ficção) ganhava aura de ficar a conhecer melhor o inimigo e como pensava e agia no solo Africano, e comparar as abordagens e poderios de cada lado. Sobre essa óptica, recordemos ainda que esta é uma de talvez uma mão-cheia de obras de Haggard com referências a Portugueses (outras incluem a personagem mestiça Zulu-Portuguesa de nome luso que dá título ao seu romance Nada o Lírio de 1892), visto que as Minas são dadas como descobertas (para Europeus pelo menos) inicialmente por um Português quinhentista, José Silvestre (por vezes mal-escrito no original «Silvestra» e traduzido não sei porquê por Eça como José Silveira), o herói Quatermain consegue um mapa do caminho para as Minas de um descendente de Silvestre/Silvestra/Silveira de Lourenço Marques (hoje Maputo, Moçambique) que lhe morre nos braços depois de aparentemente ter novamente sido um precursor dos Ingleses no caminho para as Minas (o que claro, agradava aos Portugueses como uma prova dos próprios Britânicos de reconhecimento de os Portugueses serem os primeiros Europeus em África, a base do argumento do 'direito histórico' do colonialismo luso), e vejamos ainda o nome que Eça dá a Allan Quatermain: Alão Quartelmar. É curiosa esta alteração aportuguesada quando todos os outros nomes ficam idênticos (fora alguma simplificação de escrita para leitores lusófonos, p. ex: a curandeira Gagool tornar-se Gagul porque a leitura do duplo O faria o leitor Lusófono ler "Ga-gó-ol" e não "Ga-gul"), de forma que podemos quase dizer que Eça quis tornar o herói (o explorador mais africanizado e mais eficiente de entre os protagonistas Britânicos do livro) Português; o facto de «Quartelmar» até saber de antemão da lenda da Ophir do Rei Salomão reforça esta impressão, sendo possível extrapolar sobre ser um Português conhecedor graças à outra Ofir, Portuguesa no Concelho de Esposende, também ligada à lenda das minas de Salomão. Além de que, como o jornal Público comentava numa nota acompanhando a edição da tradução de Eça para a colecção Geração Público, Quartelmar é um «narrador "queirosiano"». No fim de contas, Quartelmar torna-se uma personagem "à Eça", quase o modelo do futuro «fidalgo da Torre» Gonçalo Mendes Ramires do romance A Ilustre Casa de Ramires, que Eça começou a escrever quase ao mesmo tempo que a publicação desta tradução em livro (mas só publicado em 1900, ano da morte do autor), e que no fim do romance parte para África, considerando a colonização a esperança para regenerar Portugal, podendo nós imaginar Gonçalo, depois do fim do romance, transformado num figurino à Quartelmar, com a sua cepa do melhor do "Velho Portugal" que construiu a nacionalidade portuguesa e fez o Império Português e os Descobrimentos.
Dito tudo isto, analisando em traços largos as alterações dadas pela tradução, logo na capa e no primeiro parágrafo achamos uma tradução muito livre, começando pelo título (o original King Solomon's Mines, "As Minas do Rei Salomão", título da maioria das traduções desde então e dos títulos traduzidos das versões em filme em Portugal desde sempre, torna-se As Minas de Salomão, que seria "Solomon's Mines" em Inglês), mantendo a maioria das ideias do original, mas criando um texto Português mantendo alguma da ideia geral e do tom do original, mas agora reescrito "à Eça". E a cada capítulo, mais o texto se torna livremente traduzido, até haverem algumas alterações mais substanciais: trocando ordens de capítulos e passando 20 capítulos para somente 17. Quem quiser ver as alterações a fundo, compare os dois textos que surgem na edição do Lusitanista e Queirosianista Britânico Alan Freeland editada pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda em 2008. Graças a todas estas questões quanto a originalidade e À tradução fidedigna ou não, As Minas de Salomão não tem deixado de ser entre as obras de Eça que mais atenção receberam de estudiosos, mas claro que mesmo assim muito pouca comparada com a atenção dos queirosianistas para o geral da obra do autor, a sua biografia ou obras primas específicas como Os MaiasA RelíquiaO Conde de Abranhos, etc. Dito tudo isto, podem ler a minha análise do livro em si pelo seu enredo e características particulares aqui.

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