quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

"Corações Infantis", Maria Feio // "Children's Hearts", Maria Feio

O livro da quadragésima-nona publicação neste blogue é doutro "ilustre desconhecido" esquecido da nossa literatura infanto-juvenil. Corações Infantis é um romance curto (115 páginas) episódico que foi originalmente publicado em 1916 pela então popular Livraria Ferin Editora, e relata, de forma algo comovente, a estória de Bébinha, uma menina abastada que vive numa casa enorme e luxuosamente decorada dentro de uma herdade, e as suas experiências típicas de uma criança da sua classe social no princípio do século XX.
Apesar de claramente escrito pelo prisma de uma autora feminina adulta do século XX (Maria Feio, uma educadora que teve neste o seu único livro infantil publicado, embora tenha publicado também romances como Alma de Mulher (1915) e Calvário de Mulher (1915), ensaios como Artes e Artistas, A Beleza da Mulher, as colectâneas Contos Verdadeiros, Vozes do Coração e Lázaros e Madalenas, o ensaio Verdades (sobre problemas sociais), o volume de cartas Argumentos e o livro de poemas Sonho de Amor), o livro apresenta-nos o mundo visto e experimentado por uma criança, e a visão dela, as suas experiências, pensamentos, crenças e sentimentos (apesar de não ser narrado na primeira pessoa, mas por um narrador omnisciente que é porém simpatizante da experiência e da realidade das crianças de todas as classes sociais (um mundo que era tão estranho para muitos escritores, mesmo os para crianças, naquela altura, dentro ou fora de Portugal, como a ideia do que será o mundo animal quando nós seres humanos não estamos a olhar, dado que os retratos da infância na altura muitas vezes tendiam para uma visão idealizada da infância ou um retrato desta feito para propagandear uma dada mundo-visão do autor adulto, progressista, religiosa ou outra). Mas a óptica de educação infantil não faz com que a autora evite mostrar alguma "escuridão" do mundo adulto como realmente é e o mostre às crianças (ao que o traço de algumas ilustrações que destoam ligeiramente da beleza ligeira das restantes ajuda).
O negrume do mundo adulto pobre numa ilustração do livro
O livro não nos dá um retrato de toda a vida de Bébinha, mas um retrato de um período relativamente concentrado no tempo mas abrangente da sua personalidade, vida e ambiente em torno dela em geral, enquanto filha de uma baixa-burguesia "aristocratizada" da "província", obviamente com interesse de louvar virtudes de bondade, do estudo aplicado, do dever e do trabalho de acordo com a ética burguesa em que se defende a socialização (não "socializante" no sentido mais político) inter-classista cortês mas com a hierarquia sempre claramente definida e com a caridade a ser o factor chave nas relações dos "de cima" para com "os de baixo" (num estilo que nas primeiras décadas do século XX se implantava em Portugal no seguimento do modelo da ficção original anglo-americana do meado-final do século anterior, que se opunha no seio da nossa literatura infanto-juvenil quer a estilos mais aventureiros ou moralizantes menos burgueses e mais éticos ou religiosos vindos do final do século anterior quer a estilos mais lúdicos e anárquicos expressos de forma quase solitária pelo já à muito visto A boneca cor de rosa), e não é por acaso que um dos principais episódios (pelas 30 e tal páginas na edição de 1916) é a festa de aniversário da personagem principal para a qual a mãe filantrópica da menina convida dez crianças pobres de um asilo «que tinham sido vestidas pelas meninas abastadas», e nessa festa a mãe de Bébinha «ofereceu a todos os meninos e meninas um programa da festa que era um brinde encantador com mensagens e ilustrações, mandados fazer às crianças do asilo». Para além deste episódio vemos outras lições didáticas como aquela que a avó de Bébinha lhe dá guardando as migalhas e pedacinhos de pão que sobram do jantar para ofertar a uma velhinha mais pobre (que deles faz uma sopa) no capítulo Lição de economia.
Bébinha conduzindo uma carrocinha de burrico de presente de aniversário
Maria Feio, da qual não se conhece muito para além da autoria do livro (e dos seus outros), e só que este (e os outros) já nos sugere(m), e que não teve uma vida muito "cheia" de eventos (fora a sua actividade literária, mesmo tendo colaborado nos jornais lisboetas A Capital, o jornal de direita republicana Luta, o republicano Vanguarda, e Novidades, e nos portuenses O Primeiro de Janeiro e O Comércio do Porto, e de proferir diversas conferências), era porém claramente uma amante da natureza e das crianças, uma burguesa "de pensamento social" tout-court, uma filantropa envolvida em obras sociais de senhoras burguesas católicas numa linha muito comum na altura. Tudo isso surge neste livro, que dá assim uma boa ideia dos detalhes da vida de uma "menina bem" daquela época, com todo o pormenor e "jargão" dessa classe, dando-nos um "olhar de infiltrado" sobre essa classe social que já não existe nesses termos precisos.
Somando tudo, Corações Infantis surpreende na forma como ultrapassa as limitações do seu estilo e formato simples e piegas para dar um retrato real (mesmo que simplificado para o jovem leitor) do que era a sociedade que havia no seu tempo, e mesmo em muito da sociedade de consumo, do progresso e de mercado à portuguesa até hoje, e é por estes factores que eu atribuo aqui o estatuto de clássico do seu género a este livro, e considero que deveria ser recuperado como tal e apresentado a novas gerações e posto no seu devido lugar de clássico da literatura infantil ou infanto-juvenil, que faz com que o livro, mesmo com o seu paternalismo burguês e espírito latifundiário não merece da nossa censura de hoje, e já tarda voltar a ser visitado por leitores, independentemente da idade. O livro é raro em bibliotecas hoje, surgindo só na edição de 1916 ilustrada pelos notórios ilustradores da época J. Gomes, Saavedra Machado (1887-1950) e Alfredo de Morais (1872-1971). Bem que podia merecer uma nova edição.


The book from this forty-ninth post in this blog is from another forgotten "illustrious unknown" from Portugal's children's/young-people's literature. Corações Infantis is an episodic short novel (115 pages) that was originally published in 1916 by the then popular Livraria Ferin Editora bookstore publisher, and reports, in somewhat moving way, the story of Bebinha, a wealthy little-girl that lives on an enormous and luxuriously decorated house inside a farmstead estate, and her experiences typical to a child of her social class at the beginning of the 20th century.
Despite having been clearly written by the prysm of a 20th century grown-up female author (Maria Feio, an educationalist who had in this her only published children's book, although she had published also novels like Alma de Mulher/"Woman's Soul", 1915, and Calvário de Mulher/"Woman's Calvary", 1915, essays as Artes e Artistas/"Arts and Artists", A Beleza da Mulher/"The Woman's Beauty", the collections Contos Verdadeiros/"True Tales", Vozes do Coração/"Voices from the Heart" and Lázaros e Madalenas/Lazaruses and Magdalens, the essay Verdades/"Truths", on social problems, the volume of letters Argumentos/"Arguments" and the book of poems Sonho de Amor/"Dream of Love"), the book presents us the world seen and experimented by a child, and her vision on her experiences, thoughts, believes and sentiments (despite not being narrated in the first person, but by an all-knowing narrator that is yet sympathetic to the experience and the reality of the children from all social classes (a world that was as strange for many writers, even the ones for children, at that time, within and without Portugal, as the idea of what would be the animal world when we human beings are not looking around, given that the portrayals of childhood at that time-points many times tended to a an idealised view of childhood or a portrayal of the former to propagate a given worldview of the adult, progressivst, religious or another). But the children's education optics does not make it so that the author avoids to show to some "darkness" from the adult world as indeed it is and it does show to it to the children (to what the stroke of some illustrations that clash slightly with the light beauty of the remainders helps).
The grimness of the poor adult world on an illustration from the book
The book does not give us a portrayal of Bebinha's whole life, but a portrayal of a period relatively concentrated in time but overarching on her prsonality, life and environment around her in general, while daughter of the "aristocratised" petite-bourgeoisie from the "provincial countryside", obviously with interest of praisinf virtuesof goodness, of applied study, of duty and of work in agreement with the bourgeois ethics in which it is defended the interclassist socialisation (not "socialising" in the more political sense) courteous but with hierachy always clearly defined and with charity being the key factor in the relations of the ones from "upstairs" towards the "ones from downstairs" (in a style that in the first decades of the 20th century established itself in Portugal in the following of the model of the original anglo-american fiction from the middle/ending of the previous century, which opposed itself in the midst of our children's/young-people's literature both to more adventurous or less bourgeois and more ethnical or religious moralising styles from the ending of the previous century and also to more recreational and anarchical ones expressed on almost lonely way by the already long ago seen here A boneca cor de rosa/"The Pink Coloured Doll"), and it is not by chance that one of the main episodes (by the 30 something pages in the 1916) is a birthday party of the main character for whom the philantropical mother invites ten poor children from an asilum «that had been dressed by the wealthy little-girls», and in that party Bebinha's mother «offered to all the little-boys and little-girls a party program-booklet that was a charming gift with messages and illustrations, sent-out to be made to the asilum children». Besides this episode we see other didactical lessons like the one that Bebinha's grandmother gives her by stashing the bread crumbs and bits-and-pieces that are leftover from dinner for offering it to a poorer old-lady (who makes a soap out of them) on the Lição de economia ("Economics Lesson").
Bebinha driving an anniversary present lil' burro cart
Maria Feio, of whom it is not known much besides the authorship of the book (and her other books), and only what this(/these) one(s) already suggest(s) to us, and who did not have a life very "full" of events (outside her literary activity, even having collaborated on the lisboner newspapers A Capital/The Capital-city", the republican rightwing newspaper Luta/"The Struggle", the republican Vanguarda/ /"Vanguard", and Novidades/"Novelties", and in the Oporto O Primeiro de Janeiro/"January First" and O Comércio do Porto/"Oporto Commerce", and having delivered several conferences), was though clearly a lover of nature and of children, a bourgeois-lady tout-court "of social thought tea-ching", a philantropist involved in social works of Catholic bourgeois ladies in a very common line at the time-point. All that comes-up on this book, with all of that class' detail and "jargon", giving us an "inside look" on that social class that no longer exists in those precise terms.
Adding all up Children's Hearts surprise in the way how it overcomes the limitations of its simple and mushy style and format to give a real portrayal (even if simplified for the young reader) of what was the society that there was in its time, an even in much of it still the Portuguese-style consumption, progress and market society up till today, and it is for these factors that I attribute here the statues of classic of its genre to this book, and consider that it should be brought-back as such and introduced to new generations and put-back in its due place in children's and children's/young-people's literature classic, that makes so that the book, even with its bourgeois paternalism and landowning spirit does not desertve out censorship today, and it already is long overdue to get back to be visited by readers, independently of age. The book is rare in libraries today, coming-up only in the 1916 edition illustrated by the notorious illustrators from the period J. Gomes, Saavedra Machado (1887-1950) and Alfredo de Moraes (1872-1971). It well could deserve a new edition.

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