sexta-feira, 18 de setembro de 2015

"Filha de Branco", Reis Ventura // "Whiteman's Daughter", Reis Ventura

As peripécias coloniais são frequentes, como temos visto, nas obras que têm passado pelas publicações deste blogue. Isto é compreensível dado o passado de Portugal e a forma como a colonização (ou pelo menos algum tipo de imperialismo) em geral representou o passado de muitos povos do mundo, e enriqueceu muitos povos enquanto enfraqueceu muitos outros na 'outra ponta' do processo, pelo que tornou-se um tema muito atraente para os artistas em geral, sob vários prismas. Filha de Branco (Cenas da vida de Luanda), publicado originalmente em 1960 de Reis Ventura (que já foi apresentado na 9.ª publicação deste blogue), é no espírito desses livros centrados no tema da colonização e das suas consequências negativas e positivas e dos "produtos" (até humanos) do encontro entre mundos diversos. O livro fecha uma trilogia de Reis Ventura, Cenas da Vida Em Luanda, trilogia que mostra a realidade das três classes sociais na capital da então Angola Portuguesa entre as décadas de 1920 e de 1950, um volume dedicado à classe baixa (o livro aqui em causa), outro à média e outro à alta, enquanto se começa a formar uma luta por independência numa colónia com vários problemas.
Este último livro da trilogia representa a mestiçagem racial nos bairros limítrofes de Luanda. É aí, na «vasta área» dos chamados muceques (que o autor chamava «a parte mais original da cidade», que lembra «um formigueiro humano em que caldeia a Angola do futuro»), S. Paulo, Vila Clotilde, Muceque Rangel e Casa Branca, que surge no «centro nervoso» da área a Rua de S. Paulo («Ainda não é bem cidade; e já não pode chamar-se muceque») em que lavadeiras negras aposentadas arrendavam casas a brancos a quem curiosamente chamavam de patrão quando reclamavam pela renda atrasada. Nesses bairros de transição «cheios de pitoresco e de imprevisto», com cabanas de adobe ao lado de vivendas modernas, brancos "fura-vidas" e negros culturalmente ocidentalizados (e alguns proto-nacionalistas, membros da «Liga Africana» de então), já previa o autor o fermentar de um «país luso-tropical do porvir», em que brancos e negros interagiam de formas complexas e nem sempre idílicas (note-se que Reis Ventura, apesar de defender a supremacia e domínio português até o final da vida, já anos depois da descolonização, não defendia a segregação dentro das colónias e frequentemente mostrava os brancos pobres e os negros não-de elite local como tendo de se unir para conseguirem sobreviver ante as "vistas curtas" e políticas da burocracia colonial de Luanda, mas reconhece as actividades muitas vezes de oposição, comércio, competição, orgulhos isolacionistas e desigualdades que ocupam frequentemente o lugar que a cooperação devia ter). No amadurecimento do reconhecimento da realidade africana na escrita de Portugueses de África como Reis Ventura, vemos curiosamente um escritor Português, branco, a reconhecer algo que seria parte do protesto dos nacionalistas negros contra um certo segmento da população africana: as mestiças que eram tidas como ambiciosas (terminologia usada mesmo por Reis Ventura) «que tem no sangue a turbulência dos batuques, mas só quer um branco», o que os nacionalistas acusavam como rejeição da parte negra da suas pessoas e como sujeição a uma espécie de influência da hierarquia colonial na vida amorosa e sexual.
Filha de branco não refere-se só à personagem-título em causa (e representada na capa), mas como apontava o próprio Reis Ventura na introdução, «Filha de branco» é «esta Luanda dos Muceques (...) estranha mistura de arraial minhoto e de batuque de sanzala, de mercado indígena e de feira algarvia». Relato datado mas guiado por boas intenções e uma mundo-visão que embora não desafiando a posse colonial de Angola mostra simpatia pelos indígenas e mostra uma vida colonial portuguesa com muitos problemas sociais. Este e outros textos de Reis Ventura, que não importam para aqui, mas que revelam todos a mestria do autor na narração e na escrita (que chegou até ao cinema português em A Voz do Sangue de 1966), e que mais pátina menos pátina do mundo pós-colonial (e mesmo assim há livros muito mais datados vindos já no período pós-colonial como Ilha do meio do mundo do folclorista e escritor Católico Fernando Reis, ainda saudosita colonial em pleno 1982), na discussão da lusofonia e da relação Portugal-África (que hoje parece ser como a protagonista e o Muceque, «Filha de branco, que ficou só, e de preta que não quis resistir...») serão óptimo alimento-para-pensamento. Este livro é raro em bibliotecas (nas de Barcelos e de Braga está completamente ausente, estando porém presente na Biblioteca Nacional de Portugal não só este livro, mas um livro homónimo diferente assinado pelo pseudónimo de autor/autora Lília da Fonseca).


The colonial mishaps are frequent, as we have seen, in the works that have passed by the posts of this blog. This is understandable given Portugal's past and the way how colonisation (or at least some type of imperialism) in general represented the past of many of the world's peoples, and it enriched many peoples while it weakened many others on the 'other end' of the process, for what it became a very atractive theme for the artists in general, under several prisms. Filha de Branco (Cenas da vida de Luanda) (Whiteman's Daughter (Scenes from Luanda's life)", published originally in 1960 by Reis Ventura (who had already been introduced on this blog's 9th post), is in the spirit of those books centered on he theme of colonisation and of its negative and positive consequences and of the "by-products" (even human ones) of encounters between unlike worlds. This book closes a trilogy by Reis Ventura, Cenas da Vida Em Luanda ("Scene from Life in Luanda"), trilogy that shows the reality of the three social classes on the capital of the then Portuguese Angola between the 1920s and the 1950s decade, a volume dedicated to the lower (the book here at stake), another to the middle and another to the upper class, while it started to form itself the independence struggle in a colony with several problems.
This last book of the trilogy represents the racial crossbreeding in the liminal neighbourhoods of Luanda. It is there, in the «wide area» of the so-called muceques slums (which the author called «the more original paart of the city»), Sao Paulo, Vila Clotilde, Muceque Rangel and Casa Branca, that comes-up on the «nerve centre» of the Sao Paulo Street area («It still is not quite city; and it no longer can call itself muceque slum») in which retired black washerwomen rented houses to whites to whom curiously they called boss while they complained on the late rent. In those transition neighbourhoods «full of picturesque and of unforeseeable», with adobe huts alongside modern villas, "hustling" whites and culturally westernised blacks (and some proto-nationalists, members of the «African League» from back then), already predicted the author the fermenting of a «luso-tropical country of the hereafter», in which whites and blacks interacted in complex and not always idyllic ways (let it be noted that Reis Ventura, despite defending the Portuguese supremacy and domain till his later life, already years after the Portuguese decolonisation, did not defend the segregation within the colonies and often showed the poor whites and the local non-elite blacks as having to unite themselves for being able to survive in face of the "short sights" and policies of the Luanda colonial bureaucracy, but recognises the activities many times of opposition, commerce, competition, isolationist prides and inequalities that occupy freuently the place that cooperation should have). In the maturing of the recognition of the african reality in the writing of Portuguese from Africa like Reis Ventura, we see curiously a Portuguese, white, writer recognising somthing that would be part of the protest of the black nationalists against a certain segment of the african populations: the halfbreeds that were held as ambitious (terminology used actually by Reis Ventura) «that has in the blood the turbulence of the drumbeats but, only fancies a whiteman», what the nationalists accused as rejection of the black partt of their personhoods and as suggestion to a kind of influence of the colonial hierarchy into the love and sexual life.
Whiteman's Daughter doesn't refer itself just to the title character at stake (and represented on the cover), but as pointed Reis Ventura himself in the introduction, «Whiteman's daughter» is «this Luanda of the Muceques (...) strange mixture of Minho region country-set-dance and of sanzala village drumbeat, of indigenous market and of algarvian fair». Report dated but guided by good intentions and a worldview that although not challenging the colonial possession of Angola shows sympathy for the indigenous ones and shows a Portuguese colonial life with many social problems. This and other texts by Reis Ventura, which do not matter here, but reveal to all the author's maestry in narration and in writing (which got to Portuguese cinema in A Voz do Sangue/"The Voice of the Blood" from 1966), and that more patina less patina (and even so there are books much more dated coming already in the postcolonial period like Ilha do meio do mundo/"Island from the world's end" by the folklorist and Catholic writer Fernando Reis, still colonial nostalgic in mid 1982), in the lusophony discussion and the Portugal-Africa (that today seems to be as the protagonist and the Muceque, «daughter of whiteman, who was left alone, and of black-woman who didn't want to resist...») will be great food-for-thought. This book is rare in Portuguese libraries (in the Barcelos and Braga ones it is completely absent, being though present in the Portugal National Library not only this book but a different namesake book signed by the penname of male/female author Lilia da Fonseca).

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